Será possível uma boa convivência entre o homem e a mulher? Não temos as respostas, mas o mito de Narciso será brevemente descrito para ilustrar o que queremos dizer sobre fragilidade amorosa baseada nele. Conta o mito que Narciso era dotado de grande beleza. O adivinho Tirésias disse que ele teria vida longa, desde que não visse a sua própria imagem (Brandão, 2005). Sua beleza seduzia as virgens donzelas, as ninfas e os homens jovens de toda a Grécia. Todos se apaixonavam, mas ele não se envolvia com os comuns, os rejeitava cruelmente. Um dia, Narciso foi se refrescar num lago, debruçou-se sobre as águas resplandecentes e viu um belo jovem sob ele. Ele nunca tinha visto seu próprio reflexo, e não fazia idéia de que aquele jovem refletido no espelho d´água era ele mesmo. Apaixonou-se imediatamente pelo rapaz do lago e pensou ser recíproco o seu sentimento. Assim que ele sorriu, o rapaz também sorriu para ele. Quando tentou tocá-lo, as águas ondularam-se e a imagem desapareceu. Estava apaixonado e tudo o que podia fazer era ficar onde estava, olhado para si mesmo refletido no lago, até o esgotamento. Exausto, caiu no lago em busca da imagem refletida e morreu. Do que foi exposto sobre o mito, podemos associar à imagem de Narciso, ainda que inconsciente, a vaidade, superficialidade, aparência, arrogância, preocupação excessiva com a própria imagem e também com anseio não realizado e frustração amorosa.
Hoje, os interesses economicamente globais atingem a todos, somos filhos de uma sociedade que vende sonhos de realização e felicidade nutrindo um enlouquecido círculo vicioso de poder, trabalho, dinheiro e consumo; uma sociedade narcísica que confunde a individuação (consciência de si mesmo) com a individualização (narcisismo). Segundo Bauman (2004) homens e mulheres inseguros, incertos de seu lugar no mundo, de suas perspectivas de vida e dos efeitos de suas próprias ações, buscam e projetam no outro o que se é, o que já se foi ou, o que se gostaria de ser. A fragilidade amorosa os atinge a ponto de estarem cada vez mais infelizes, insatisfeitos, frágeis e solitários, por isso a necessidade da consciência do seu processo de individuação, conhecer-se a si-mesmo, ser autêntico, para não se fundir com o outro. Por ser a única espécie imagética, o homem precisa refletir e ser refletido e, na dimensão amorosa narcísica, a imagem do outro nunca é suficiente para suprir as próprias expectativas e por isso a busca sem fim pela completude. Segundo Jung (O.C.Vol..X § 499), “a decisão moral e a conduta de vida são, progressivamente, retirada do indivíduo que, encarado como unidade social, passa a ser administrado, nutrido, vestido, formado, organizado segundo a satisfação da massa” . O poder das imagens explorado pela mídia tem invadido a todos e pode ser comparada a um mecanismo narcísico, cruel, frívolo e superficial. Sob um manto de beleza, encantamento, doçura, festividade e às vezes poético, ela se utiliza da fragilidade, ansiedade, conformismo e deficiência infantil, para vender seus produtos e fórmulas. A sociedade está baseada na artificialidade e o indivíduo é bombardeado por imagens, formas e conteúdos que mudam várias vezes por dia e não permitem a ninguém decidir o que é importante. As fontes de tensão de uma cultura narcísica são sem fim. Para Jung (O.C.Vol.VII/1§113), o indivíduo precisa aprender a distinguir o eu do não-eu, isto é, diferenciar-se da psique coletiva. É alarmante o contexto social narcísico, pois assim como num jogo perigoso, a relação homem-mulher é altamente afetada pela indústria da aparência física em detrimento dos sentimentos e emoções confiáveis. E em meio a tantas opções, muitos preferem não se arriscar, entrando num dos mandamentos da modernidade, a lei do isolamento. Para corroborar esta lei, o advento da globalização veio facilitar e manter esse estado que não é somente físico, mas também psicológico. Por um lado, a pessoa está se comunicando com o mundo pela internet, mas ao mesmo tempo isolada, fica entre um monitor e a cadeira. Existem também pessoas que preferem uma relação amorosa virtual, o outro em tempo real pode ser o que o desejante quiser, não tem convívio, são trocas imaginárias e idealizadas. A exacerbação do individualismo, a reivindicação de espaço privado e de realização pessoal têm anulado qualquer possibilidade de tolerância necessária para uma convivência pacífica, dentro da conjugalidade, na família e na sociedade como um todo. Bauman (2004, p.23) utiliza uma metáfora para falar dos anseios sociais da atualidade quando se busca um relacionamento amoroso. “Busca-se uma rosa sem espinhos”. Dando significado à metáfora, reconhecemos isso, nas relações amorosas de hoje. Na relação amorosa, ninguém quer ter o trabalho de tirar os “espinhos”, dialogando, trocando, transformando a si próprio e ao outro ou, aceitando e convivendo com as diferenças. A fragilidade da sociedade narcísica aponta para que todos e tudo estejam prontos, as coisas acontecem rapidamente, são muitas as ofertas e não há tolerância às frustrações. Os espinhos dão muito trabalho e requerem a participação do tempo. O relacionamento humano quer seja parental, de amizade ou amoroso, está se tornando muito vulnerável, a condição devoradora e frágil da sociedade narcísica está dificultando os compromissos e parcerias, parece que estão se afastando da capacidade de amar e serem amadas. As pessoas estão dando importância aos amores intensos e rápidos, o que se deseja é a variedade, excitação, a promessa certeira do prazer. É um jogo perigoso do tudo ou nada, o valorizado é o mundo fora das proibições. A líquida racionalidade moderna do homem é desejar instantaneamente alguém que simbolize psiquicamente o eu ideal. Na sociedade narcísica o outro não é percebido, há um amálgama entre o desejo e a ilusão, entre o objeto real e ideal, nesta relação não há preocupação com os valores e a singularidade de cada um. Simbolicamente podemos dizer que há o “eu e o eu”. Parece que as relações estão doentes, neuróticas, compulsivas, infelizes, medíocres, acreditamos que estes sintomas podem ser minimizados caso as pessoas se escolham com os “olhos da alma” - mais conscientes e com amor. As relações baseadas no processo de individuação (conhecer-se a si mesmo e tornar-se um indivíduo) respeita a diferença entre o eu o tu, entra um nós na relação, isto é, o principio da alteridade. Nesse caso observamos que há permissão de ambos, um passa a fazer parte da vida do outro no que se refere ao crescimento do amor, quando construído com compromisso de cumplicidade, respeito e verdade, tende a crescer.
Se homem e mulher se mantiverem nessa sociedade narcísica, frágeis e isolados, amando apenas a si mesmos, em busca de dinheiro e poder, o que será das relações humanas? Para finalizar reflito sobre as palavras de Jung que pergunta: “O que poderá suceder à nossa cultura e à nossa própria humanidade...?” (O.C.Vol.X§488). Acredito que há possibilidade de entendimento entre os Homens, caso tenham consciência de si, de suas atitudes e comportamentos e, queiram se desenvolver para um convívio saudável, amoroso, e mais, suportem conviver com as diferenças.
REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS: BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004; BRANDÃO, Junito. Mitologia grega. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2005; JUNG, Carl. G. Presente e Futuro. O.C.Vol.X. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991 e Psicologia do inconsciente. O.C.Vol.VII/1,13 ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
Um comentário:
Adorei o texto ("dilíça") e penso: poxa, tadinho de Narciso, apenas por não conhecer-se atravessa o tempo estigmatizado dessa forma. rsrsrs
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